terça-feira

Pânicos em cascata

Rio-me de pensar neste absurdo, mas só me rio uns nervosos segundos porque no fundo não tem mesmo piada nenhuma.
Quando éramos gente primitiva, colectores e nómadas, quando Prometeu nos deu o fogo; e a árvore a consciência da nossa nudez; e quando essas histórias verdadeiras e simbólicas nos mostravam estoicos, indefesos e pequeninos num mundo de predadores terríveis, escassez e um incompreensível mundo sem causa e consequências bem defininas... éramos assumidamente frágeis. Estávamos sempre a um segundo da morte certa, e no milagre de uma vida que resistia nos nossos corpos aflitos e animados das forças que animavam todas as outras criaturas.

O Calvin tinha uma tirinha de BD onde brincava com uma casinha onde vivia um senhor velhinho.
Esse senhor velhinho, além de velhinho, estava alheio ao facto de que deixara um bico do fogão aceso e tinha na mão uma caixa de fósforos. O que era irrelevante, porque nesse momento um avião despinhava-se a grande velocidade sobre a sua casa. O que também não tinha importância, porque perto passava uma linha de comboio onde um comboio corria louco perdido dos eixos dos carris e iria portanto partir tudo... e mais algumas confluências que faziam daquele segundo do velhinho uma espécie de imagem parada no tempo, do que a vida significava realmente.

Nós, deixámos de ser nómadas (embora alguns advoguem a mobilidade como um sinal de grande evolução e desenvolvimento... com que eu concordaria se não fosse por imposição e necessidade...), mantêmo-nos predadores embora num formato fabril sinistro, agricultores num estilo megalómano que daria para alimentar três planetas do tamanho de Urano, se houvesse lá alguém para alimentar, e se não fôssemos egoistas e doentes o suficiente para deixar morrer à fome até os daqui mesmo.
E sim, consta que fomos à lua, eventualmente. Consta que já juntámos toneladas de cacos em órbita tecnológica à volta do nosso planetinha mãe pequena e fartinha até aos cabelos das nossas excentricidades.

A parte cómica e nada cómica é que nos mantemos na mesma fragilidade neanderthal desses de nós que andavam com o precioso foguinho, a fugir de feras, a fugir de tudo, à procura de tudo, sempre na contagem decrescente para o fim eminente, fosse nas mandíbulas quentes da besta que nos apanhasse, fosse na tribo igualmene aflita que nos usasse para compotas, fosse pelo frio, a doença, e toda a precariedade de sermos criaturas entregues a um meio inóspito e milagroso.

Agora é a gripe A, a guerra, a crise, as alterações climáticas, armamento nuclear capaz de rebentar com isto tudo 10 vezes, e nós somos o velhinho, com o fósforo na mão, sem fazer a menor ideia do grau de miraculosidade que o nosso segundo presente representa perante tudo isso.

Temos fé, temos força, estoicos como sempre.
Cada célula cumpre a sua tarefinha, oxalá sem se atrapalhar, e nós somos embrião, feto, recém-nascido, criança, adolescente e por aí fora, sempre nesse segundo do fósforo.
E nas nossas barrigas vencem a corrida da vida serzinhos fabulosos, com uma capacidade espantosa de adaptação, mudança e resistência. A cada dia, a cada semana, tudo sempre a ser reformulado, modificado, crescido e melhorado. Tudo no mesmo segundo do fósforo.

Pré mamãs deviam estar proibidas de ver noticiários, televisão, e tudo o que nos lembrasse da nossa fragilidade. Ser mãe é em muito continuar apesar do medo, acreditar apesar do medo, investir apesar do medo; mas o medo está sempre presente, e a informação que corre sobre os males do mundo não nos ajudam porque não nos dão soluções, apenas evidências do inevitável acumular de factores de risco exponencial.

Terei este bebé em Dezembro. Passarei o periodo típico das gripes com um marido a trabalhar no aeroporto e uma filha na escola e eu a ter de ouvir uma e outra vez o quanto estou no grupo de maior risco, mas ninguém me diz: "Portanto faz assim, resolve assado"

Para mim, o truque do velhinho do fósforo é este que também uso. Investir na alegria de imaginar que vou ver crescer um maravilhoso bolo no forno e ver esse bolo na minha cabeça com o detalhe que teria se estivesse pronto, na minha mesa, na mesa da minha vida. Os meus felizes e saudáveis, seguros e amáveis, á minha roda, por muito tempo, com alegria, tempo e crescimento.
Porque isto também sempre houve, desde os tempos do foguinho, do Prometeu e do deus das tempestades.
Sempre houve espaço para sermos livres da eminência do terrível.

E eu quero viver aí.

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