quarta-feira

Co-dependência

Não sei se a co-dependência é uma doença ou um estado. Um estado que se prolonga por vezes vidas inteiras e que se torna um hábito mental, uma forma de estar no mundo que acaba por nos constituir e confundir com o que sentimos de nós mesmos.

Não sei se é uma adição, não sei se é vitalícia, a única coisa vitalícia que vi até hoje foi a vida. Mas acredito que tenha raízes mergulhadas na profundidade da nossa génese, do nosso crescimento, e que seja portanto muito difícil de desmobilizar, desmontar e dizer: Isto sou eu, e isto é a co-dependencia que dispo agora.

Ser difícil não significa: Logo, impossível. Significa: Logo, exige disciplina, consciência e muita verdade. E pode levar tempo, e ter recidivas...

A vida, a saúde e a doença, são palavras como co-dependência, liberdade e amor.
Tentamos dar nomes às coisas, mas não sabemos o que são. Vivêmo-las e rotulamo-las para podermos falar sobre elas. Há que manter a humildade. Estamos em grande medida impossibilitados de as entender em termos universais, porque eventualmente estes nem sequer são conceitos universais.

Eu sei que cresci a confundir ser amada com ter o poder de dar ao outro uma felicidade impossível.
Aliás já foi para isso que sequer nasci, e eu nem sabia. Mas fui feita nascer, porque uma menina querida morreu de uma forma estúpida e ninguém podia apagar essa dor, mas quem sabe ofuscar com a vinda de outra. E lá vim eu, tentar o impossível.

É muito cansativo, tentar que os outros fiquem felizes por nosso intermédio. Quando os outros andam nas suas vidas, e precisam das suas respostas, e só as podem ter neles mesmos... e isso fazia-me sentir sempre à parte da narrativa principal. Eu era a parte que não podia ter problemas, tinha de fazer parte da parte boa.

A palavra co-dependência vem habitualmente das casas onde existem dependentes, adictos oficiais ou menos oficiais, mas suficientemente desequilibrados ou negligentes para se notar em algum ponto da história. Mas não tem de ser sempre assim. Basta esse equívoco de base.
- Se conseguires fazer feliz aquela pessoa impossível de fazer feliz, és a pessoa mais poderosa do mundo. E esse poder tem o nome: Amor.
... uma bela treta!
:-)

Um dia a minha filha de 9 anos estava a fazer uma birra gigantesca. A birra nº5544447585444 das férias. Eu estava muito cansada. Tentei de tudo para que ela se sentisse bem. E depois lá acordei para o óbvio.
Eu, simplesmente, não tenho o poder de fazer ninguém feliz. Nem tenho de ter. Nem ninguém tem esse poder para comigo. A felicidade é um hábito mental que se cria por dentro, que se tem por dentro, e que nunca depende de nada de fora.

Eu posso estar mesmo zangada e a achar que tenho imensa razão. Mas objectivamente a minha zanga nada tem a ver com o que me possam fazer. Tem sempre a ver com o que decido fazer com isso, e essa decisão não é feita em consciência. É um hábito, uma maneira de estar que se confunde com uma maneira de ser.

Se ela estava frustrada, chateada e a querer amolar toda a gente ao seu redor... Eu tive de lhe dizer: Eu não tenho o poder de mudar nada do que sentes. Vais ter de decidir o que fazer com isso. Podes continuar assim horas, dias ou a vida inteira. Podes mudar isso agora e ir brincar. Eu não posso agarrar no teu cérebro, carregar nuns botões e mudar o jogo que estás a jogar na tua cabeça.
Eu não tenho esse poder.

E ela respondeu:
- Mas às vezes fazes.
E eu respondi:
- Tu relacionas eu fazer uma coisa com tu ficares feliz, mas eu hoje já fiz as mesmas mil coisas e nenhuma resultou, porque não depende de mim. Depende do que tu fazes com o que o dia te dá.

Este diálogo, foi depois de muitas horas de eu andar de esquema em esquema, a imaginar estratégias que podiam resultar, a tentar mobilizar o mundo à minha volta em função da minha imagem do que uma família feliz devia ser.

É muito difícil aceitar que não temos qualquer poder sobre o que o outro sente. Mas é óbvio que até sobre o que sentimos é difícil ter algum poder. E a lógica seguinte é a de que o outro nos pode dar felicidade, como uma prenda que se oferece.
Mas se não tivermos dentro uma forma de estar na vida que nos permita aceitar a oferta simples de se estar bem e em paz... nada que alguem faça nos tira do peito a dor de estarmos habituados a sofrer by default.

Essa é que é essa.
Chamem-lhe co-dependência, chamem-lhe o que for.
Para mim chama-se gaiola de um amor de faz de conta, um filme de terror. E não vale nada.
Amar realmente é ver o outro completo, na dor ou na alegria, na morte ou na vida, e respeitarmos o que ele decida viver, ser ou perder. Respeitar na certeza de que a outra pessoa tem sobre si mesma, o mesmo poder que tivermos para com o nosso mundinho de dentro...
Quando nos entregamos ao torvelinho de resolver o mundo dos outros acontecem duas coisas inevitáveis:
1) Não conseguimos.
2) A nossa vida vai ao ar.

:-) Simples.
Doi.
Mas é assim.

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