sábado

Disturbing element

O Wayne Dyer é um de 4 filhos de uma mãe que foi deixada pelo marido com os miúdos todos por criar. O pai, sem uma explicação, e sem deixar uma pensão ou forma de ajuda foi embora e nunca mais disse nada.
Incapaz de manter 4 filhos pequenos, a mãe teve de os dar para adopção, ficando dois num lado e dois num outro, aquilo a que os americanos chamam Fosters care e que são casas de adopção, das quais umas maravilhosas, outras verdadeiros filmes de terror.

O Wayne no azar teve sorte. A senhora responsável pela sua casa era preocupada com as suas crianças, não queria que elas se sentissem muito diferentes das outras e gostava que elas se sentissem tão protegidas e integradas como a maioria das crianças com pai e mãe.

Um dia o Wayne Dyer chegou à sua casa de adopção muito choroso e zangado e queixou-se à responsável que tinha ouvido uma conversa entre o professor e o director e que ele tinha ouvido eles a dizerem que o Wayne era um Scurvy elephant. E ele estava profundamente ofendido por se ver insultado.
No dia seguinte a responsável foi à escola saber que história era essa de andarem a dizer que o seu Wayne era um Scurvy elephant o que deixou o director perplexo. "Scurvy Elephant??! Mas ninguém disse que o Wayne era um Scurvy Elephant. O que me disseram é que o Wayne era um disturbing element..."

O wayne contava isto a rir. Esta história vinha a propósito do facto de que ele sempre se tinha sentido um elemento destabilizador, realmente. Não só por ser um menino zangado, por ter sido abandonado por uma figura importante para si e por causa disso ser privado da mãe e toda essa história horrível. Ele era destabilizador, porque nunca se contentava com respostas sumárias do tipo "as coisas são assim porque são." E isso podia ser cansativo para quem tentava enfiar-lhe coisas na cabeça, o que em grande medida a educação formal é.

Eu ouvi esta história no meu recém falecido leitorzinho de mp3, a caminhar no paredão e tinha, afortunadamente o meu lenço ao pescoço, que usei para cobrir a cara, porque me ri imenso. Muito giro ouvir o próprio autor a falar das suas coisas.

Então eu pensei que não fui educada a pôr em causa, nem tive à minha volta nenhum estímulo positivo ou negativo para o fazer. Os meus referenciais eram todos pessoas cumpridoras, e as que não eram ou não tinham sido tinham a vida num farrapo. Assim a mensagem era coerente.
Mesmo o meu pai que tinha um baú de histórias de rebeldias de jovem, era agora um homem pousado, que vingava no trabalho tudo o que eventualmente sentisse, que nunca ninguém chegou a tocar, a não ser telepaticamente para quem tivesse esse talento. A rebeldia fizera parte de um tempo em que ele era profundamente infeliz e desestruturado e a estrutura que agora o mantinha coeso, era o facto de ser para lá do cumpridor.

Não me lembro de alguma vez me ter fascinado pela ideia de que houvesse tanta coisa a pôr em causa em tudo o que todos pareciam saber. Nem me lembro de sentir que houvesse muito mais a descobrir.

O Wayne foi sempre um questionador. E os questionadores costumam sofrer imenso, porque prolongam a idade dos porquês por tantos anos, que tem de ser cansativo.
Entretanto cresceu, formou-se, casou... o percurso, enfim...
Até que soube da morte do pai. O pai tinha morrido, estava enterrado algures.
E ele sentiu uma vontade forte de ir lá, uma coisa que não era mórbida, era uma espécie de sede de certeza. Talvez tivesse de literalmente pôr uma pedra nesse assunto. E lá foi.

Foi uma perda de fortíssimo impacto ele perder a pessoa na qual tinha podido investir todo o seu não perdão, toda a sua ira, toda a sua indignação na vida. Aquela era a pessoa responsável por tudo o que ele não tinha tido, não tinha sido, não tinha podido. E agora estava ali, insondável debaixo da terra.

Depois de muitas horas a olhar para aquele cenário de silêncio onde existiam tantas vozes interiores de raiva, e de perda e de confusão que vinham dele tão menino até agora; o Wayne sentiu o impulso de escrever. Ele nunca tinha publicado nada. Mas em 14 dias escreveu o livro "As suas zonas erróneas" e depois desse "as suas zonas mágicas" e "as suas zonas sagradas".
Estes foram 3 livros publicados em Portugal ela Pergaminho.

Ler estes 3 livros é como assistir a um homem a acordar.
Este acordar não é o acordar de que acordamos todas as manhãs para viver as muitas realidades simultâneas do dia. Ainda hoje percebi que todo o caminho que fiz para ir comer e procurar um leitor de mp3; passei-as no dentista. É verdade. Mantive sempre um diálogo mental com o dentista. E quando dei por mim estava lá. Isto não é estar acordado.
Estar acordado é esse caír em si, em que de súbito nos apercebemos onde estamos, o que estamos a fazer, e a nossa situação nesse momento à luz de uma clareza sem passado nem futuro. Foi o que sucedeu ao Wayne.
Esses 3 livros contam esse acordar. Foi uma tomada de consciência por escrito e para mim foi delicioso conhecer esse processo.

Escusado será dizer que depois deste o Wayne já escreveu uma pazada de livros, bestsellers inquestionáveis, e palpita-me que não vai parar tão cedo.

Ler estes livros coincidiu com um tempo em que eu também me sentia acordar. Talvez nem tivesse escolhido estes livros se não fosse o caso. Nessa altura eu só lia romances e coisas sobre o que estivesse a estudar na universidade.

Lembro-me de pensar que se apesar de nunca ter sido uma pessoa questionadora, no sentido de não me contentar com aquilo que me era apresentado como realidade; também não fui uma criança contente e satisfeita com as respostas que tinha.
Se eu tivesse de usar 3 palavras para definir a minha infância e adolescência eu escolheria:
Solidão, segurança, melancolia.
É a impressão que tenho de todo esse tempo.
Eu impludi as minhas questões. Não estava satisfeita, mas não tinha ao meu redor ninguém que pudesse responder, ou que desse conta de que eu às vezes estava triste. Eu vivia no meu quarto de espelhos onde era suposto tudo ser perfeito, e se eu não achava perfeito era melhor estar calada, porque era eu que estava errada, óbviamente.

As pessoas que mais gosto de ouvir, e as que mais me inspiram e com que mais me identifico e me sinto igual, são aquelas que quando ouvem uma explicação ainda ficam mais baralhadas.

Como no livro "uma breve história acerca de tudo" em que o autor conta que quando via aqueles diagramas a explicar o interior do nosso planeta, as camadas, e aqueles desenhos das galáxias e a matéria inquestionável da escola, ele ficava atónito. O que ele queria realmente saber era: Como é que se pode saber isto?? Como é que se pode saber como era o mundo dos homens primitivos, como é que se pode saber como é o átomo, como é que se pode saber como é o centro do nosso planeta? Como é que se pode ter a certeza? Como é que me podem ensinar isto de forma tão garantida?
E estas eram as suas reais questões. Another Scurvy elephant, portanto...

Este é um dos traços do Álvaro que eu também adoro. Ele também sempre foi totalmente Scurvy Elephant. E viveu essa consternação e ainda vive. E é por isso que às vezes lhe custa tanto lidar com a mediocridade e com o não questionar do quotidiano de tanta, tanta gente.

Aquilo a que eu chamava "a minha desadequação" e que me fazia sentir uma adolescente frustrada porque de popular eu não tinha nem sequer a motivação, quanto mais a roupa... e que me fazia sentir uma jovem mulher sem lugar no "mundo dos grandes" porque eu não tinha ambições de carreira, nem nenhuma motivação para a concorrência, a luta e a maluqueira da correria em que via os "bem sucedidos".. essa mesma desadequação, vim a chamar-lhe o que tenho de melhor.

Eu sou capaz de me ter tornado um disturbing element, por ter sempre vivido de uma forma que me deixa só, sim. Solidão, segurança e melancolia. Mas tudo isso de uma forma que tem hoje outro sentido.

Estou só quando estou comigo, e comigo não é possível estar só, porque existe aqui dentro um fervilhar de mundo, que só quem vive aqui dentro para saber. Estou só se estiver entre quem não tenha nada para dizer de inspirador. Porque junto de pessoas bonitas, inspiradoras e questionadoras, eu não estou só, estou entre iguais.

Estou segura, porque percebi que não há segurança, não entrego a minha vida a esse deus inexistente, o que me assegura de que tudo será sempre assim, como é. A única coisa de que tenho mesmo a certeza é de que nada do que hoje define o meu dia, estará igual daqui a uns tempos. E isso significa que não gasto um quinhão da minha energia a preservar essa tal pseudo-segurança. A minha segurança tem de estar onde a minha paz de espírito estiver e essa, como nome indica, depende do que tenho dentro, e de nada do que tenho fora.

A melancolia, essa transformou-se em mel. Já não é um longo e suave lamentar. Passou a ser uma mistura doce e salgada, de lágrimas com que cresci e de doçura que também vivi; e dessa receita mágica veio a nascer uma mulher de quem gosto, e que afortunadamente, sou eu.

Então as conversas, as notícias, a lufa-lufa, os temas, as crises, as febres e as modas e as razões de viver que me rodeiam como um rádio roufenho; eu simplesmente não consigo integrar isso. É como um eletrodoméstico que guina e que quando por momentos se silencia me faz suspirar aaahhh... de alívio. É a realidade a que eu pertenceria se não fosse um disturbing element.
Aqui, neste mundo, só há um pré-requisito para entrar. Uma frase que li há imensos anos no livro As aventuras de João sem medo de josé Gomes Ferreira.
Era uma frase que estava escrita num muro que rodeava uma terrível floresta de perigos e enigmas, e a frase dizia assim:

- É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir.

Sem comentários:

Enviar um comentário