segunda-feira

O véu

O fim da vida e esse mistério de não existirmos, depois existirmos e depois já não existirmos outra vez, anda a mexer-nos com o miolo desde o tempo das cavernas.
Desde muito antes do tempo de plantarmos couves, já nos fazia espécie isso de morrer, e dificilmente deixávamos corpos de algum dos nossos pelo chão se morressem.
Enterrávamos o corpo e mais alguns pertences, e até alguma comidinha para o caso de dar a fomeca do lado de lá.


Isso do "lado de lá", é outro dos mistérios, com 1001 metáforas culturais.
Uns dizem que se vai de barco para o outro lado do rio, outros vão numa estrada, outros num túnel, outros atravessam o véu...

É como se existisse sempre um filtro pelo qual se passa, no qual se existe depois em simultâneo, numa dimensão da qual estamos separados por rios, véus, estradas e outras formas de nos vedar acesso a essas formas espirituais de ser memória.


Em certas tradições místicas, esta é a altura do ano em que o véu mais se estreita, o rio tem o caudal mais fino e por cerca de um mês, poderá existir mais "visibilidade", "sensibilidade", "contacto" com o "outro lado".
Significa isto que é mais fácil lembrarmo-nos a propósito de coisa nenhuma de alguém que morreu, sonharmos com ela, encontrarmos algo que nos lembra essa ligação, recebemos recados por músicas, por conversas de terceiros, por todas as formas mais subtis ou menos subtis consoante a nossa abertura ou fechamento.


Para mim tem sido em sonhos. Sonhos, sonhos e mais sonhos. Todas as noites vem alguém, vem alguma forma, vem um formato qualquer de eu me lembrar que não sou independente de uma árvore gigante da qual eu sou o galhinho com dois frutos pequenos que gerei.


Honrar a nossa raíz, não é encobrir os erros, fazer de conta que essas pessoas foram todas santas e maravilhosas.
Honrar é lembrar, lembrar com aceitação, perdão e integração dessas pessoas que partiram, mas que nos deixaram sempre alguma coisa, que nos deixaram sempre imagens, histórias, genética, legado de tantas maneiras.

Para podermos existir, quantos tiveram de existir primeiro, desde o início dos tempos.
Estarão todos do lado de lá do véu?
Não sabemos.
São tudo mistérios que se podem explicar no humus da matéria orgânica transformada, na cadeia alimentar, ou que se podem explicar em hipóteses de purgatório, de reeincarnação, de coisa nenhuma...

Eu não sei nada sobre isto.
Sinto vida para lá da vida, e sinto a definição de vida demasiado confinada a um corpo para mim que sinto tanta vida sem corpo na minha experiência emocional, espiritual mais profunda.
E dirão, que a minha última sinapse apagará consigo o meu último devaneio místico e que afinal tudo se apaga e ficará apenas um resto podre de tudo o que fui.

Não na memória, não na memória dos que me honrarem, não na memória dos que eu tiver sabido conquistar num enredo de histórias de amor, de herança, de tanta coisa importante para alguém tão desimportante como eu.
Então eu presto isso à minha raíz.
Nestes tempos de véu mais fluído e fino, onde talvez algum dos meus passe, algum dos meus se lembre, no limbo do lado de lá, de uma mulher menina do lado de cá, que ainda não sabe nada disso, mas que mantém acesa a chama.


Mantenho acesa a chama de sermos todos um enorme braço de humanidade, que percorre a história por dimensões e dimensões de evolução como ela fôr, DNA e sequência ou rede cíclica de ida e retorno, ida e retorno.
Não preciso da teoria, basta-me sentir no peito a chama acesa, de tudo isso, de todo esse respeito, de toda essa força e essa diversidade, a ser lição de orgulho e de humildade ao mesmo tempo, no meu coração de pessoa em caminhada, sabe-se lá vinda de que paraísos, sabe-se lá a caminho de que paraísos também.

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