terça-feira

A gripe, o grupo, e as letras do alfabeto.

Agora é a A.

Eu por mim saltava para a Z sem necessidade das restantes vogais e consoantes. Estou sempre a enganar-me, porque aves começa por A e eu às vezes digo "a gripe das aves, ai, não, a gripe A, enganei-me." E vai na volta nem me enganei. Gripes são gripes, são uma chatice pegada, fica-se pingão, anasalado, a garganta doi, as temperaturas destemperam-se... muito chato.
Não tenho uma gripalhona verdadeira há anos.
Tenho-me safo com homeopatias que funcionaram.

Não consigo levar a sério esta peça de Shakespeare em mais actos do que gostava de assistir.
Depois fica aquela demanda por ser a mãe responsável e coerente que quero sentir que sou.

A minha filha apareceu no domingo à noite aflita da garganta, com olhos de desgraça, o nariz numa tragédia, dor de cabeça. Febre? 37.2 ou 3. OU seja, uma espécie de pré-febra.
Lá entrou o ben-u-ron, a homeopatia, o vick e a minha esperança de que ela resolvesse isto rápido.
Achei que ela ia acordar sem febre, que levariamos o dia seguinte a resolver sintomas e que no dia ainda seguinte (hoje) ela iria á escola.

Não foi o que sucedeu.

Acordou com os mesmos 37.3

Cá ficou de molho, com as coisinhas que costumam resultar... e resultaram. Nem dor de cabeça, nem dor de garganta, nem nariz a pingar, nem olhos de desgraça. Dir-se-ia que "passou". Mas aqueles 37.3 passaram a 37.4 e á noite a 37.8
Parecia que a febre evoluia de forma inversamente proporcional ao retroceder dos sintomas.

Ligar para a saúde 24? Centro de saúde? Pediatras caríssimos? Seguros de saúde ainda mais caríssimos?
E se eu disser que achei mesmo, mesmo, parvo entrar nessa dança maluca? A dança do "na verdade ninguém sabe o que se passa... mas mais vale prevenir" e então desatam-se a fazer coisas malucas porque sim. Porque é o protocolo, porque são as instruções da OMS...

Eu acho que está tudo demasiado doido. E a consciência de corpo de cada um, a imunidade, o processo pessoal, individual de resposta a seja qual for a gripe do abecedário.. deu lugar a uma espécie de legislação paralela, e sujeitar a minha filha a protocolos...

Resultado: Ando aqui a tentar o meu melhor. A tentar confiar na melhor serviço de saúde que eu conheço que é o amor, o bom senso de mãe, o corpo de uma filha que está a fazer o que pode, da melhor maneira, ao seu ritmo e à sua maneira.
Certezas? Nenhumas.
Dúvidas? Todas.
Mas com isso eu sinto que faço parte de um clube de milhões e milhões de membros chamado "toda a gente".

Hoje, passado o domingo, a segunda e a terça com uma melhoria tão acentuada nos sintomas em geral, mas mantida a temperatura aviso; lá me rendi e liguei para a saúde 24 para ver se encontrava conforto na noção de que estou a ser uma mãe responsável.

"Mais 24 horas com mais ben-u-ron. Desta vez 7.5ml a cada 8 horas. Se amanhã por esta hora tudo estiver igual, ligue de novo para encaminharmos a situação".

E assim foi.
Uma colherada de ben-u-ron e a filha foi para a cama.

Eu agora, aproveito a noite, invoco a magia da esperança das mães do mundo, de todas as que se encostam um pouco ao leito dos seus filhos ensonados, semi-febris ou como for, sempre crianças com corpos milagre nos trilhos da vida em si mesma.
A cura não está na organização mundial de saúde, nem no enfermeiro, na cápsula ou na vacina.
A cura está num corpo de menina.
E eu sou simplesmente a mãe.

De burro e de génio todos temos um pouco

Há alturas em que me sinto esperta. Sinto que até sei coisas, que até percebo.. O conceito que temos de nós é sempre relativo, por isso sentir-me esperta tem o seu quê de achar que sou espertalhona, de me ter em boa conta.
Outras vezes sinto-me bronca. Até gaguejo. Quero dizer as coisas que tinha pensado com eloquência e sai-me um raciocínio frouxo no qual nem eu acredito. Sucede-me sobretudo junto de quem me intimida. As minhas convicções tornam-se em hesitações e acabo por preferir ouvir atenta do que dizer o que de repente chamo patacoadas.

Saber, ser esperto, ter certezas e convicções; são fruto de uma sensação securizante que procuro e que serve para me sentir bem comigo, constante no que penso das coisas, para encontrar alguma coerência e conseguir encontrar sentido e gostar de mim.
Quase toda essa construção é muito frágil. A minha forma de ver as coisas já mudou muito, só não mudou a forma como me envolvo e reafirmo aquilo que faz parte do todo coerente que em cada momento tenho como o certo.


A minha relação com médicos e com a autoridade nunca foi muito linear. Eu respeito pessoas, independentemente do que representem. Sinto que a autoridade se conquista pela moral, pelo entendimento, pela capacidade demonstrada.
Um médico nabo, ou um polícia burgesso, ofende a classe, e ofende-me a mim. Um professor arbitrário ou obtuso, um patrão abjecto, abusivo ou sórdido... nada neles me impele ao respeito pelo respeito porque sim.
Posso respeitar a pessoa dentro dessa, o ser que quer ser o melhor que consegue embora naquele momento só consiga aquilo. Dentro existem outras dimensões que eu respeito a um nível que, ainda assim, não me impede de dizer o que penso, quando o que penso quer ser dito.

Menos quando me sinto bronca.
Menos quando as minhas convicções ficam esmagadas pelo facto de me sentir intimidada por uma qualquer insegurança baseada em várias possíveis razões para me sentir insegura.


Isto para dizer que às vezes na rebiteza, posso ser tola e mesquinha. Na humildade posso ser finalmente um pouco esperta. Na esperteza posso ser mesmo esperta, ou outras vezes posso ser a campeã das broncas. E no exacto momento de ser ou acontecer estas possibilidades... eu nunca consigo o discernimento e distanciamento suficientes para ver qual dos tipos de esperta/bronca estou a ser.

Tenho sempre de me consternar ou animar com essa evidência depois. Como num filme das férias de 89:
- "IIh, olha para a minha figura ali!!"

E é chato. Porque sería bom para mim conseguir primeiro ser humilde, depois não me deixar intimidar, depois aprender com os outros, depois partilhar o que aprendi, e voltar de novo ao humilde.
Mas raios se isto não é mesmo difícil de fazer!

sexta-feira

Semana 30

quinta-feira

Deus vive nos detalhes

Sempre adorei esta imagem. Remete-me para os filmes de época, cujos planos nos deixavam ver nos detalhes a grande maravilha do cinema, nos quais os diálogos chegavam a ser pretextos, como nos filmes do Visconti.

O desafio e o encanto dos detalhes é que são detalhados e exigem detalhe :-)
Exigem minúcia, disciplina, rotina e é por isso que são encantadores. é o encanto da casa das avós, o detalhe. É nas pequenas coisas que a história paira e respira, é nos pequenos gestos, nas pequenas fracções de rotina que a estabilidade dos espaços familiares de antigamente assentam, e isso constrói-se. Não vem no kit inicial.

Numa casa cada um tem necessidades, potencilidades, uma rotina e eventos extra-rotina.
Cada compartimento tem uma vida própria, com necessidades, potencialidades, rotinas e eventos extra-rotinas, tal como as pessoas que os habitam.

Cada semana, cada dia, tudo o que vivemos impregna-se da nossa vida e a nossa vida molda-se á medida dos espaços de que dispomos num ciclo de dar e receber que nunca deixa de ser bidireccional.

Nunca somos os mesmos num espaço que nos encanta e dá conforto e segurança, ou num espaço desordenado, sujo e feio.
Tambem temos dificuldade em colocar nas coisas a beleza e a ordem de que as nossas cabeças e corações se vêm despidos.
É como um jogo de espalhos interminável, mas cujos ciclos precisam de ser interrompidos quando trabalham contra nós, e mantidos quando esse fluxo nos edifica e engrandece.

Mulheres em casa, mulher trabalhadora.

Quando eu era criança a minha avó ficava comigo algumas semanas no Verão de todos os anos e a minha mãe não se cansa de repetir uma frase que ela não se cansava de repetir à minha mãe:
- "Se esta menina fosse educada numa casa como deve de ser ia ser uma dona de casa óptima, porque é tão ajeitadinha, tão arrumadinha...! Uma pena!"

Claro que critérios são critérios e para a minha avó "uma casa como deve de ser" era uma casa da qual a mulher se ocupava à velha moda antiga: Ficando lá.
Para a minha mãe, que saíu de casa aos 15 para estudar, e que se licenciou em biológicas quando as pouquíssimas mulheres que se formavam era em música ou para serem professoras primárias... "uma casa como deve de ser" era uma casa onde alguém limparia tudo enquanto ela trabalhava e nós estudávamos para "um dia sermos alguém".

Claro que "ser alguém" também é uma daquelas frases nas quais cada um mete o que lhe parece. Para a minha mãe "ser alguém" era um conceito relacionado com trabalho/possibilidades/desempenho.

Para mim "ser alguém" é ter nascido e ainda não ter morrido. E mesmo quando se morre ainda pode calhar de sermos alguém durante muito tempo. Depois se calhar passamos a ser "algo" mas já não "alguém" no sentido nominável.

Como num diapasão as coisas parecem seguir do tic para o tac e do tac para o tic. Da mulher presa em casa fomos para a mulher que se liberta, e desta fomos para a mulher que fica presa na rua e já não pode ficar em casa.
Ao tic tac geracional das famílias e dos indivíduos corresponde com algum delay o tic tac de um contexto cultural que invariavelmente está do lado de uns contra os outros.

Assim, se já foi "o certo" a mulher ficar em casa. Depois passou a ser "o certo" a mulher fazer carreira. E neste momento uma mulher ficar em casa está para o colectivo como antes uma mulher trabalhar. Um dos lados parece ter sempre de ficar com o galardão do embaraçoso.

Certo é que feitas as contas eu percebi que se eu pagar almoço, atl, infantários, doméstica e se eu investir em tudo o que é necessário para eu ir trabalhar, desde as refeições fora, aos gadjets necessários, roupas, acessórios, material, gasolina ou passes, etc... Eu não consigo pagar o meu trabalho.
E além disso, entretanto desamparei a minha filha, fui contra a minha natureza que me impele a estar presente para as crianças mais do que tudo, e alguém ficou na minha casa a fazer as minhas coisas e a tomar conta e a educar as minhas crianças à sua maneira. Não à minha.

Estas foram as minhas contas, acerca de um mundo visto pelos meus olhos.
Mas não consigo abstrair.

A verdade é que fui educada para o oposto disto. Sinto-me totalmente impreparada para o desafio do meu dia de hoje.
Aqui estou eu, na minha vida de sonho, grávida como sonhei, com a vida familiar que eu queria... e não sei para onde me virar.

Sinto-me fisicamente muito pesada pela gravidez e pelo calor de um Verão que insiste em manter os termómetros em alta. Sinto-me uma nulidade em organização e arrumação.

Esta casa tem imenso espaço, para viver e para limpar e arrumar. Tem imensa vida, a gerar alegria e entropia e eu, estou como quero, mas muito longe de estar á altura do desafio que aceitei como sendo a minha vida ideal.

Entro amanhã na 30ª semana. 10 para o grande dia, eventualmente.

Algo me diz que isto ainda me vai dar muuuuuita água pela barba.
Pela barba, que não tenho.

sexta-feira

29 semanas - o que vai nesta barriga!

Não deixa de me impressionar.
Ontem foi o dia da ecografia. O dia em que íamos tentar perceber o que se passava com uma mancha detectada na morfológica e que denunciava a presença de sangue no intestino da bebé.
Por mais que me tentassem despreocupar-me em relação a isto, como podia eu ficar completamente tranquila com vestígios de sangue no intestino do bebé?

Já lá não estava. A mancha foi-se. O que quer que fosse... foi-se. E assim respira uma mãe um pouco mais fundo.
Não muito mais fundo porque o meu diafragma está perigosamente perto do pescoço... mas o mais fundo possível.

Vim para casa com os papelinhos, as impressões das ecografias onde se pode ver o pé, o perfil do rosto, o narizito, as costinhas e tudo sobre o meu bebé de quilo e meio que já se virou de cabeça para baixo, para treinar e amofinar um bocado a mãe.

Estou PESADA.
Estou bold como a letra.
É mesmo assim que tem de ser e mais ainda será.
As próximas semanas vão ser para encher, engordar e ganhar massinha corporal para a bebezita ter energia suficiente para não morrer de frio neste planeta onde também há Inverno.

Agora vou fazer um jantarito.
Tenho roupa para lavar que dava para abrir um negócio e lá fora chove. Nada disto pode secar, mais vale esperar por um dia mais suave que espero que não seja de hoje a um ano. Estas coisas fazem-me falta.

Preparei o meu ninho pré-parto, um cantinho meu para eu deixar dormir em paz o meu corpo gordo.
O Álvaro ronca e deita-se tarde e acorda cedo durante toda a semana.
Chega o fim de semana deita-se tarde e acorda tarde e eu quero acordar cedo.
E além disso, digam que é asneira, digam o que quiserem, mas quero poupar-me a deixar-me ver neste estado.
Este estado é sagrado. Mas só se vê a sacralidade cá de dentro.
Por fora o que se vê é uma mulher baleia a bambolear-se trôpega e limitada e acho que esta relação não precisa desse registo.

Vou, por assim dizer, hibernar. E daqui a uns meses volto com a Primavera, esbelta como só uma sereia, com a minha bebé nos braços e os meus abdominais de volta à base.
Se for asneira... logo vou saber.
hoje deu-me paz preparar o meu quartinho de terceiro trimestre. Tudo o que posso vestir é XXL.. quero os meus gatos, os meus livros, o meu sossego de mulher crescida e pré-mamã.

And that's all folks..!

quinta-feira

Instinto de ninho

Lembro-me de isto ter sucedido exactamente nesta altura na minha gravidez com a minha filha há 9 anos atrás. Uma espécie de febre, de urgência de aprontar. O que eles chamam o instinto de ninho.
Ambas as situações coincidiram com mudanças de casa... os ninhos por excelência.

Mesmo quem não muda de casa sente esta necessidade de preparar. É o mesmo impulso que põe pardalinhos a apanhar galhinhos para construir os seus ninhos para os ovos, e o mesmo impulso que faz rodar o nosso planeta vivo e a nossa galáxia viva por estarmos aqui, sempre criando, gerando e promovendo vida.

A doença de consumo na qual vivemos mergulhados neste canto grande do mundo pequeno que é o nosso, aliada ao instinto de ninho, às emoções hormonalmente temperadas e ao facto de que estou a mudar de casa, dão um efeito explosivo.
O ter de ter.
O ter de ajeitar.
A imaginação devolve-me imagens de quartinhos maravilhosos, de momentos de passeio, de conforto, de sentimento de prosperidade, e de doçura.
A realidade dá-me a ambiguidade em que eu própria estou, como não podia deixar de ser. Vemos o que estamos.

Contrariar o meu impulso de ninho faz-me mal.
Dar vazão ao meu instinto de ninho trazer-me-ia um grave problema de débito financeiro.
A linha do equilíbrio ninguém a desenhou e a mim falta-me uma caneta.
... daí que seja preciso procurar espaços de silêncio no qual alguma objectividade consiga, de quando em quando, respirar.

O temos e o não temos. Carrinhos, alcofas e tarecada

O "necessário" para um bebé é um conceito cultural.
Um bebé pode ser preso por um pano às costas da mãe enquanto esta trabalha e se move e o mesmo pano poderá ser a cama em que dorme. Podem ferver-se biberons numa panela e podem nem ser necessários biberons.

A realidade da nossa vida é construída dentro do contexto que nos rodeia e as necessidades tornam-se necessidades até já não ser fácil discernir se o são ou não.

No tempo da minha avó o que sería "necessário"?
No tempo da minha mãe?
No meu?
No dos filhos dos meus filhos e netos...?

Enviei ao Álvaro três mails com tudo o que se apura dentro do nosso contexto social e cultural como "necessário" e posso dizer que foram mails extensos.
Retirei essa informação não de sites comerciais mas de sites sobre bebés e as suas "necessidades"
Depois fui buscar as imagens e os preços para esses objectos. E aí está uma boa coisa com que matar as nossas cabeças de pré-pais.

Ontem à noite a bebé na minha barriga pulava, pontapeava e estava tornada numa verdadeira atleta uterina!
A mão do Álvaro na minha barriga fez-me sentir que é mesmo verdade, é uma verdade partilhada, e que os dois sentimos como importante e inesquecível.
Que maravilha imaginar essa dança.
Depois foi a Mariana. Também pôs a mão na minha barriga, também sentiu e foi delicioso vê-la a tentar explicar por gestos o que tinha sentido e como imaginava que teríam sido os movimentos que provocaram aqueles saltos subitos na barriga.

De noite ainda foi assim.
As "necessidades" deste momento são as que sempre serão:
- alimento
- conforto
- segurança
e em enorme medida: - amor bom.

quarta-feira

Gaiolas e espaços de liberdade

As aves viviam todas separadas. As aves são frágeis, são livres e são bonitas. mas também são imprevisíveis para um cérebro mamífero, e o tempo então ainda mais difícil de prever; até para quem tem satélites à disposição; quanto mais para quem só conta com um último olhar para o céu do entardecer...

As aves representam os nossos aspectos assustadiços, frágeis e ávidos de espaço de vôo. Representam o que temos de mais indefeso e de um lado nosso que não troca o perigo pelo cativeiro.
Ainda assim temos as nossas aves em cativeiro.
E é isso que as aves representam.

No sábado caminhei zangada. Sentia-me presa num corpo trôpego, sentia a alma presa numa sensação entediante de impotência, peso e desagrado.
Tinha no pé um pé elástico, uma pomada com cheiro a cânfora, o tornozelo dorido e o outro dorido por compensar sempre o dorido... por isso doiam os dois.
Tinha numa faixa à cintura, para compensar o peso e permitir-me andar sem parecer um pato. O que na mesma parecia.
Tinha na barriga uma cinta para me apoiar, para não me deixar deslaçar.
Tinha uma pomada gorda no umbigo, na barriga toda, no peito; para não estiraçar a pele.
Tinha sono e vontade de estar acordada dentro desse sono.
Tinha canseira e energia dentro dessa canseira.
Toda eu estava enfaixada.

Fui passear os cães e foi terrível dobrar-me para lhes pôr as trelas. E eles à espera. E tudo à espera.
Até que me sentei num degrau fresco da escada. Inchada e desesperada, a tentar concentrar energia suficiente para começar de novo a tentar.
E lá consegui.

Chegámos à rua. Íamos eu, o Álvaro, os meus pequeninos comigo e a Loba à frente. foi quando os vadios começaram a aparecer, abandonados e taralhocos de solidão e desamparo. Tão bonitos. Tão largados no mundo.
Os meus pequeninos tiveram de vir para o meu colo porque quase morrem de ataque cardíaco de tanto desatinar a ladrar e a guinchar!
Dei meia volta e voltei para casa. Foi o passeio. Os 2 minutos e 4 segundos de passeio.

Zangada, chegámos a casa, tirei as trelas de toda a gente e foi com raiva que percebi que não conseguia tirar a minha trela. A minha era a única que não tinha fecho.
Saí porta fora danada. Não podia andar rápido. Na verdade mal conseguia respirar. Os vadios lá estavam com menos um estímulo.. com os seus olhares entregues ao Agora que lhes cabe.
"Tenho a alma presa". "Tenho a alma presa"
É horrível sentir isso.

Os passarinhos lá estavam. Presos, cada um em sua gaiola. Cada gaiola mais pequena do que a outra. Ora na sombra ora no sol, ora dentro ora fora, mas sempre na mesma gaiola sem espaço para voar, para ser, para viver.
Enervados, perdidos e tolos, para cá e para lá nos seus poleiros vitalícios:
- Isto é tudo o que alguma vez terás, serás, ou viverás na tua estúpida vida de pássaro!
Bem me importa que sejas coloridinho, belíssimo, esperto, enérgico, alerta para a vida que te pulsa nesse coração pequenino. Pouco me importa que pies de desespero! Pia para aí!
"Tenho a alma presa".

Depois a alma não estava só presa numa contingência física "para o meu bem" "por uma boa causa" "pensa no bebezinho".
Depois também era tudo em vão, porque este bebezinho não ia nascer num lar de paz, o lar dos meus sonhos, a casa da família/amor, da família/apoio, da família de verdade.
Afinal eramos apenas mais uma dessas famílias com problemas, na qual todos teremos imensa razão, e todos teremos a mais idiota e insignificante vontade de fincar o pé na nossa individualidade mal crescida.
"Tenho a alma enfaixada numa vida mal escolhida!"
"Cedo demais. Tarde demais".

A gaiola tem de ser maior. Tem de ter cortinas, tem de ter espaço, conforto e recursos. A gaiola tem de ser boa. Tem de ter luz, tecto. Tem de ter a temperatura, o ar respirável dos meus sonhos. A gaiola tem de ser a melhor parte, tem de ser a razão pela qual nasci pássaro. A gaiola... eu não quero uma gaiola assim. Nem o pé inchado. Nem nada disto.

Segunda fui à loja. Passei o dia mais vertiginoso dos últimos tempos.
Cheguei à loja e pedi a maior gaiola que alguma vez tivessem tido. Mostraram-me a mais maravilhosa das gaiolinhas. E eu zanguei-me:
"Que é isto?? Onde é que o pássaro voa??"
"Mas quer fazer criação ou quer que eles voem?"
"Diga?"
"Porque há gaiolas para fazer criação onde os pássaros são separados, e há gaiolas maiores para os pássaros voarem."
"Quero uma para eles voarem"

Trouxeram-me outra onde os pássaros podiam voar na vertical... o que é óptimo para todas as espécies de aves que nascem com molas nos pés... ou seja... nenhuns.
"Er... oiça... eu queria mesmo que eles pudessem voar."

Foi então que percebi... não havia gaiolas dessas dentro do que eu podia pagar. Eu não podia pagar o vôo. Voar é só para quem pode. É caro voar.

Virei-me para os roedores. Os que não querem voar, os que querem correr, esconder-se, roer e explorar. Percebi que tinham gaiolas melhores para voar e foi então que pedi a maior gaiola para roedor.

"Mas o que a senhora tem são pássaros, não é?"

Trouxe as duas maiores gaiolas para roedor. As maiores que encontrei. Grandes na horizontal, grandes em altura.
Trouxe um amigo para o meu piriquito perdido de si, a enlouquecer como eu. Trouxe a maior gaiola que encontrei para que voassem juntos. Eles preferiram dar beijinhos logo no primeiro encontro.
Os canários voaram. E escolheram poleiros ora juntos ora separados. Mas preferiram comer, porque podiam voar até lá.

Eu sinto culpa. A loucura envolve sempre culpa. Nunca se é compreendido na loucura a não ser pela loucura dos outros.
A sanidade está escondida nessa gaiola grande dos doidos. Um espaço na cabeça que ocupa espaço demais, que custa dinheiro de mais, que é errado e tudo o que irresponsabilidade me traz de dor no peito, em tempo de tantas despesas e necessidade de cálculo de custos.

Mas os meus pássaros voam. E beijam-se. E têm espaço.
E mais.
Ainda trouxe de lá um coelho. E trouxe de lá uma coisa de mim que encontro poucas vezes, mas que raios me partam se não amo também!

terça-feira