quarta-feira

Gaiolas e espaços de liberdade

As aves viviam todas separadas. As aves são frágeis, são livres e são bonitas. mas também são imprevisíveis para um cérebro mamífero, e o tempo então ainda mais difícil de prever; até para quem tem satélites à disposição; quanto mais para quem só conta com um último olhar para o céu do entardecer...

As aves representam os nossos aspectos assustadiços, frágeis e ávidos de espaço de vôo. Representam o que temos de mais indefeso e de um lado nosso que não troca o perigo pelo cativeiro.
Ainda assim temos as nossas aves em cativeiro.
E é isso que as aves representam.

No sábado caminhei zangada. Sentia-me presa num corpo trôpego, sentia a alma presa numa sensação entediante de impotência, peso e desagrado.
Tinha no pé um pé elástico, uma pomada com cheiro a cânfora, o tornozelo dorido e o outro dorido por compensar sempre o dorido... por isso doiam os dois.
Tinha numa faixa à cintura, para compensar o peso e permitir-me andar sem parecer um pato. O que na mesma parecia.
Tinha na barriga uma cinta para me apoiar, para não me deixar deslaçar.
Tinha uma pomada gorda no umbigo, na barriga toda, no peito; para não estiraçar a pele.
Tinha sono e vontade de estar acordada dentro desse sono.
Tinha canseira e energia dentro dessa canseira.
Toda eu estava enfaixada.

Fui passear os cães e foi terrível dobrar-me para lhes pôr as trelas. E eles à espera. E tudo à espera.
Até que me sentei num degrau fresco da escada. Inchada e desesperada, a tentar concentrar energia suficiente para começar de novo a tentar.
E lá consegui.

Chegámos à rua. Íamos eu, o Álvaro, os meus pequeninos comigo e a Loba à frente. foi quando os vadios começaram a aparecer, abandonados e taralhocos de solidão e desamparo. Tão bonitos. Tão largados no mundo.
Os meus pequeninos tiveram de vir para o meu colo porque quase morrem de ataque cardíaco de tanto desatinar a ladrar e a guinchar!
Dei meia volta e voltei para casa. Foi o passeio. Os 2 minutos e 4 segundos de passeio.

Zangada, chegámos a casa, tirei as trelas de toda a gente e foi com raiva que percebi que não conseguia tirar a minha trela. A minha era a única que não tinha fecho.
Saí porta fora danada. Não podia andar rápido. Na verdade mal conseguia respirar. Os vadios lá estavam com menos um estímulo.. com os seus olhares entregues ao Agora que lhes cabe.
"Tenho a alma presa". "Tenho a alma presa"
É horrível sentir isso.

Os passarinhos lá estavam. Presos, cada um em sua gaiola. Cada gaiola mais pequena do que a outra. Ora na sombra ora no sol, ora dentro ora fora, mas sempre na mesma gaiola sem espaço para voar, para ser, para viver.
Enervados, perdidos e tolos, para cá e para lá nos seus poleiros vitalícios:
- Isto é tudo o que alguma vez terás, serás, ou viverás na tua estúpida vida de pássaro!
Bem me importa que sejas coloridinho, belíssimo, esperto, enérgico, alerta para a vida que te pulsa nesse coração pequenino. Pouco me importa que pies de desespero! Pia para aí!
"Tenho a alma presa".

Depois a alma não estava só presa numa contingência física "para o meu bem" "por uma boa causa" "pensa no bebezinho".
Depois também era tudo em vão, porque este bebezinho não ia nascer num lar de paz, o lar dos meus sonhos, a casa da família/amor, da família/apoio, da família de verdade.
Afinal eramos apenas mais uma dessas famílias com problemas, na qual todos teremos imensa razão, e todos teremos a mais idiota e insignificante vontade de fincar o pé na nossa individualidade mal crescida.
"Tenho a alma enfaixada numa vida mal escolhida!"
"Cedo demais. Tarde demais".

A gaiola tem de ser maior. Tem de ter cortinas, tem de ter espaço, conforto e recursos. A gaiola tem de ser boa. Tem de ter luz, tecto. Tem de ter a temperatura, o ar respirável dos meus sonhos. A gaiola tem de ser a melhor parte, tem de ser a razão pela qual nasci pássaro. A gaiola... eu não quero uma gaiola assim. Nem o pé inchado. Nem nada disto.

Segunda fui à loja. Passei o dia mais vertiginoso dos últimos tempos.
Cheguei à loja e pedi a maior gaiola que alguma vez tivessem tido. Mostraram-me a mais maravilhosa das gaiolinhas. E eu zanguei-me:
"Que é isto?? Onde é que o pássaro voa??"
"Mas quer fazer criação ou quer que eles voem?"
"Diga?"
"Porque há gaiolas para fazer criação onde os pássaros são separados, e há gaiolas maiores para os pássaros voarem."
"Quero uma para eles voarem"

Trouxeram-me outra onde os pássaros podiam voar na vertical... o que é óptimo para todas as espécies de aves que nascem com molas nos pés... ou seja... nenhuns.
"Er... oiça... eu queria mesmo que eles pudessem voar."

Foi então que percebi... não havia gaiolas dessas dentro do que eu podia pagar. Eu não podia pagar o vôo. Voar é só para quem pode. É caro voar.

Virei-me para os roedores. Os que não querem voar, os que querem correr, esconder-se, roer e explorar. Percebi que tinham gaiolas melhores para voar e foi então que pedi a maior gaiola para roedor.

"Mas o que a senhora tem são pássaros, não é?"

Trouxe as duas maiores gaiolas para roedor. As maiores que encontrei. Grandes na horizontal, grandes em altura.
Trouxe um amigo para o meu piriquito perdido de si, a enlouquecer como eu. Trouxe a maior gaiola que encontrei para que voassem juntos. Eles preferiram dar beijinhos logo no primeiro encontro.
Os canários voaram. E escolheram poleiros ora juntos ora separados. Mas preferiram comer, porque podiam voar até lá.

Eu sinto culpa. A loucura envolve sempre culpa. Nunca se é compreendido na loucura a não ser pela loucura dos outros.
A sanidade está escondida nessa gaiola grande dos doidos. Um espaço na cabeça que ocupa espaço demais, que custa dinheiro de mais, que é errado e tudo o que irresponsabilidade me traz de dor no peito, em tempo de tantas despesas e necessidade de cálculo de custos.

Mas os meus pássaros voam. E beijam-se. E têm espaço.
E mais.
Ainda trouxe de lá um coelho. E trouxe de lá uma coisa de mim que encontro poucas vezes, mas que raios me partam se não amo também!

1 comentário:

  1. olá! Vê-se mesmo que adora animais. Os pincher´s são lindos. Eu tive um pincher traçado, mas morreu porque alguém o atropelou, talvez de marcha atrás... partiu a coluna..não tinha sangue no corpo, nada, mas tinha dores. O médico veterinário disse que uma operação não adiantava nada, que era melhor assinar o documento, para lhe darem a injecção, para ele morrer. Hoje em dia estou arrependido, de ter feito isto, porque aqui há dois anos, vi um jovem ao colo, com o seu cocker e parecia-me a mim que também tinha a coluna partida. Hoje penso se não seria melhor ele estar vivo, mesmo com as suas limitações. era um companheiro e tanto. as melhoras para os tornozelos e felicidades p gravidez! beijos

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