sexta-feira

Uma pena

Os meus pais tentaram fazer um bom trabalho. É ironico chamar "um bom trabalho" ao que criar-nos foi, porque para os meus pais os valores humanos assentavam em grande medida nos valores do trabalho.

Os meus pais tentaram fazer um bom trabalho dentro do que sabiam e do que conseguiram. E eu sei que é difícil porque tenho uma filha com 9 anos e sei que é difícil e humildemente eu não faço ideia do que irá resultar da minha interacção com ela.

A educação, ou a criação, é algo cuja factura só recebemos muitos anos depois, quando já nos escapou das mãos fazer a diferença e passamos à fase das compensações, dos remendos.
Dos 0 aos 6 já estava tudo escrito. E depois continuamos a ter um papel importante, mas tudo o que fizermos irá colar no que tiver sucedido até aos 6.


No caso dos meus pais, existiu um paradoxo que ainda hoje me zanga. O que me zanga é que tudo parecia perfeito dentro do quadro de valores que nos incutiram.
E no entanto lembro-me de chegar aos vinte e poucos anos a sentir-me uma nulidade e considero que tudo em mim era da mesma extrema imaturidade emocional que ainda hoje lhes atribuo.

Quando temos uma criança nas mãos, ela é apenas uma criança e nós temos toda uma história, um conjunto de certezas e um filtro de percepção do mundo, do que importa e do que as pessoas devem ou não ser. A criança é apenas uma criança.

Podem pôr-nos no judo e na natação, no inglês e nas explicações. Podem vestir-nos, pentear-nos. Podem dizer coisas queridas, ou não dizer nada, ou nem bater nem gritar nem traumatizar de forma expressa.
Dizemos "que bons pais".

Mas e que opinião tinham realmente estas pessoas dos bebés que fomos, dos meninos e meninas de 1, 2, 3, 4 anos que tínhamos. O que acharíam realmente de nós?
Será que nos achavam brilhantes? Ou cansativos?
Um orgulho? Ou um embaraço?
Uma maravilha? ou de uma mediania que nada se prestava a dizer?

Os meus pais tentaram fazer um bom trabalho. Por isso fizeram o melhor possível e mais do que isso não se lhes podia exigir.

No entanto a minha ideia é a de que a opinião que tinham sobre mim não me edificou, não me estruturou numa certeza de que eu era especial, capaz, forte e promissora.
Eu acho que eles achavam que eu era frágil, mediocre, mariquinhas e que dificilmente acabaria o liceu.

Desde então mais não fiz do que tentar provar-lhes o contrário.
E se eles valorizavam o desempenho!!
Depois comecei a ter de provar a mim mesma o contrário.
Depois comecei a ter de provar a toda a gente o contrário.

Isto significa que, se eu tinha de me esforçar tanto para provar algo em que nem eu acreditava, então eu era uma fraude.
E se eu era uma fraude, como podia provar-me que era capaz de seja o que for?


Não é preciso ter 35 anos para sentir isso. Basta ter 5. Não precisamos que nos digam nada. Até podem dizer-nos "que lindo desenho!"
Nós sabemos quando existe fraude.
A fraude desmascara-se a si mesma, e é por isso que lhe chamamos fraude, senão chamavamos-lhe verdade e estávamos enganados.


Os meus pais viram em mim um bebé sem promessas, fui amamentada o menos possível, fui colocada em amas e infantários o mais possível, fui a filha frágil que precisavam de sentir que precisava de ser protegida como a minha irmã não tinha sido, por uma fatalidade parva que ninguém podia controlar.
Mas a mim podiam.
Nem bicicleta, nem brincar na rua, nem andar numa escola pública, nem deixar-me errar, nem aceitar os meus queixumes!
Eu fui a menina metida na encubadora á nascença e ainda lá fiquei looongos anos. Numa incubadora vivencial. Porquê?
Por nada.
Porque sim.
Fazia sentido.

E foi nesse sentido que os meus pais tentaram fazer um bom trabalho.


Infelizmente, creio que não fizeram.
Creio que me encheram dos mesmos equívocos e esqueceram-se de que eu precisava de tempo, de me sentir com crédito e com direito a sentir reconhecimento. Creio que não perceberam nem os meus talentos, nem a minha força, nem as minhas potencialidades.
Chamaram fragilidade á minha sensibilidade.
Chamaram fragilidade à minha empatia.
Protegeram-me da vida e depois acharam-me impreparada para a vida.
Acharam que eu não iria acabar o liceu, mas jamais mo permitiriam. Não existiam alternativas.
Acharam que eu era volúvel, dispersa, preguiçosa, fraca, mariquinhas.
Acharam isto desde o princípio.

Como poderíam educar-me para acreditar em mim, como podiam fazer-me sentir que podia arriscar, podia tentar, podia errar. Como podiam fazer-me sentir perfeita e merecedora de amor incondicional? Como podiam dar-me a maturidade emocional que não tinham? A profundidade espiritual que não tinham? Como podiam fazer-me sentir capaz, responsável e promissora, se não acreditavam que eu fosse.

E ainda hoje.. Ainda agora, a dúvida subsiste.
Quem sou eu?
Esta pessoa que não valoriza o desempenho, nem o trabalho.
Esta pessoa que só valoriza a humanidade do ser humano, a vida da vida, o crescimento e aprofundamento da experiência de viver, em amor, em família, numa estrutura nutritiva.
Esta pessoa que não acredita em segurança a longo prazo. Porque acredita que a história nos mostra que esse é um conceito abstrato. E que é dentro que alguma segurança pode haver. Se houver.
Esta pessoa que acredita que o único investimento válido se faz em construir pontes por dentro, castelos de paz e de entrega ao processo da vida.
Porque o resto... assim vai assim vem.

E do que observo o meu pai partiu deixando as contas um caos. A empresa em que trabalhou morreu. As coisas seguiram o seu curso. A minha mãe continua a investir na mesma estrutura, que um dia vai ter o mesmo fim. O mesmo colapso que tudo o que é superficial leva.

Ela acha que não sou de confiança. Acha que não sou uma pessoa forte, nem viável e que estou condenada a uma "vida pequenina" como ela diz. E então, tenta defender-me de mim mesma, como desde o primeiro dia. Ainda não percebeu.
Ainda não percebeu que desde que nasci ainda não fez outra coisa senão cortar-me as pernas, mandar-me andar e depois oferecer-me benevolente umas moletas.
E ainda hoje pode dizer-me:
"És mesmo inteligente!"
Mas depois decide tudo como se eu fosse mentecapta.

E vai acabar por partir tambem, deixando tudo num caos, porque não tem qualquer competência de gestão, e vai estampar tudo, e vai achar que foi por nossa causa, e nem vai perceber, que todo o tempo andou a lavrar asfalto, a garantir uma segurança impossível e a ver filhos incapazes, onde estavam dois seres humanos de valor.

... uma pena.

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