sexta-feira

35 semanas






Está a acontecer com alguma frequência. Acabou de suceder ainda agora.
Com um ar entusiasmado, pessoas, normalmente mulheres, comentam comigo:
- " Já está quase, não está?"
E eu respondo, meio a suspirar que sim.
- "Quanto tempo falta?"
E quando eu respondo, a expressão muda para um lamentar. Acho que deve dar a impressão de que o bebé devia nascer daqui a uma ou duas semanas no máximo, e quando as pessoas pensam que ainda é quase um mês, devem ficar a pensar que eu vou estoirar antes.

E eu, que tinha gostado tanto da parte do "está quase não está" quase acabo a ter de dar alguma esperança a essas pessoas:
- "Passa num instante.." "Em 40 semanas, 4 não são nada..." e coisas assim.

Os estranhos são estranhos. Lêem pensamentos...

De dentro

De dentro do meu coração em guerra
vejo um mundo em guerra
De dentro do meu coração perdido
vejo um mundo perdido

De dentro da minha visão de mim errado
Vejo o erro de um mundo virado
do avesso meu e do mundo
dois lados do mesma fronteira torta
de dentro de uma vida morta em mim.

De dentro do meu coração ofendido
Vejo a malícia da arma que ataca
Vejo a dor do peito abatido
De dentro do que sinto vejo o que vejo.
E ofendo-me uma e outra e outra vez.

De dentro do meu coração amado
Vejo o amor do meu coração curado
pelo coração sofrido de quem também sofreu
num passado errado que morreu
trazendo na bagagem a vontade de ver diferente
do que vê um coração doente.

De dentro do meu olhar mais sincero
Vejo a sinceridade e vejo a delicadeza
do interior escondido por trás da máscara rudeza
e a arma e a guerra do mundo
ficam máscara de mim e de tudo
do que afinal de mais importante existe.

Camadas e camadas de vontade de ser
Ser por dentro uma paz boa de viver
Ser por dentro uma paz boa de querer
sempre mais fulgor nesta vida.

De dentro, vejo a cor
que de dentro tiver mais sabor
seja amargo ou doce ou neutro
nunca vejo for ao que não tenho dentro
e nunca tenho dentro a paz que não quiser ver
mesmo em quem me fez sofrer
para poder ir embora
fazer as malas de fora
e rir nesse finalmente por dentro
ser aquele que aceita nascer.

O foco e o zoom

Estava aqui a tentar encontrar palavras para dizer uma coisa que sinto sem palavras... e da qual nem sei bem como ter a certeza.
Vou falar no foco e no zoom como experiência pessoal.

Na minha experiência pessoal, o que foi mudando comigo e que mais me permitiu dar saltos em frente foi o sistema de zoom e focagem da minha percepção.

O zoom, permite-me aproximar para ver o detalhe, para me dedicar ao pequeno, às coisas pequeninas mas que fazem toda a diferença.
O mesmo zoom permite-me afastar e recolher uma visão panorâmica, aquilo a que os americanos chamam a big picture.


A focagem é um dispositivo que me aproxima e afasta do senso comum. Por oposição ao senso comum posso ganhar ou perder nitidez numa forma cristalina, fresca e única das quase realidades em que me vivo.

Nos meus piores momentos tinha o zoom na distância errada e o foco regulado pelo senso comum.
Nos meus melhores momentos tinha o zoom centrado no essêncial desse momento e o foco dava mais nitidez ao primeiro plano da minha vontade de ver verdades simples, e o senso comum sem nitidez como pano de fundo, suficientemente desfocado para não me importunar na minha viagem pessoal pelas imagens de mim mesma.

A maior parte das coisas que vivo tem um zoom e um foco certo, e não existe uma medida, uma forma de os regular que sirva para tudo em mim, por isso tenho de estar sempre a decidir qual o foco, qual o zoom, para poder dar resposta a cada coisa e estar á altura de cada momento, desafio e forma de estar em que me quero ver estar.

Há muitas situações que não posso resolver com o zoom centrado em mim. Tenho de afastar. E perceber que o que sinto é a minha parte de algo maior que diz respeito, por exemplo a toda a minha família e que é a esse nível que as respostas estão.
Noutras situações estou a tentar resolver o problema do mundo e tudo o que tinha de fazer era um zoom bem aproximado à maravilha mágica de fazer um belo chá.

Quando o zoom certo me ultrapassa, e a abordagem panorâmica me dilui em assuntos maiores que eu, sinto-me impotente, porque sei que não posso resolver os problemas do mundo quando sou apenas a célula pequena do pequeno bocadinho, do meu pequeníssimo bocado de mundo.

O que tenho verificado, é que tenho parcelas gigantes, não são as mais visíveis, nem são as que estão mais à superfície. Estar nesta forma de parcelas gigantes de mim exige uma lente especial. Uma lente subconsciente, simbólica, arquetípica, mágica, inocente, criativa e alegre.
Esta lente desfoca a aparente realidade, e auto-foca-se, auto-zooma-se e de repente podemos ver numa linguagem de amor simples e clareza infantil, um corpo santo, um espírito aberto; que nos torna enormes até na nossa tão pequenina pequenez.
Cada um encontra esta lente á sua maneira, mas todos temos este recurso disponível e à espera.

O objectivo é um dia não precisar de articular zooms e focos. Os nossos e os dos outros.
Encontrar a nossa dimensão de existência no nosso pertencer.
Quando pertencemos já somos a parte pequenina e a parte grande.
Já somos o nosso bocado de percepção do mundo de si mesmo.

Nesse observatório científico porque experimental da nossa mais silenciosa essência momentânea, podemos integrar tudo de tal forma que saúde, equilíbrio, alegria e tranquilidade estão na mão que estendo à mão que estendes com tudo o que nos magoou e tudo o que nos construiu, e com a lente formidável que encontrámos, desenhamos um mundo novo, onde todos podem receber de nós, o nosso melhor lado para sempre.
E com isso mudámos o mundo.
E era tudo uma questão de zoom e foco.

A energia de acreditar

Não tenho compreendido o que se passa comigo nestes últimos dias.

Andei ali umas largas semanas a caír. Foi por isto e por aquilo, parecia que não me podia mexer e andava mesmo quebrada e a sentir-me a caír. Achei precoce sentir-me tão mal.. ainda faltava tanto tempo. Se já estava naquele estado quanto mais nas últimas semanas.
Fiquei pessimista, e o corpo estava pessimista também.
Dores, torcidelas de pé, contrações prematuras... inventou de tudo. Até hérnias de umbigo.
Paralizada, com ordens para descansar, eu sentia-me mesmo mal.


Estranhamente, agora, com mais peso, mais barriga, mais perto do final, acabo de chegar à semana 35 e estou com energia. Consigo respirar e respirar é vida, literalmente. Talvez uma respiração menos ofegante esteja a fazer este milagre.
De repente penduro cortinados, vou às compras, construo vedações... sinto que consigo fazer tudo, sinto que falta pouco e que sou capaz.
Estou com vontade de fazer as coisas e de ver tudo bonito e bom.


Suponho que houve uma frase que também teve importância. A minha obstetra da CUF disse-me que da semana 35 em diante, se a bebé nascesse não correria riscos. E isso animou-me. Animou-me porque agora ela já está formada, mexe-se com força e está pronta. Está só a engordar um bocadinho, a preparar-se para o Inverno de cá, do lado de fora da barriga da mãe.

Gostava que a bebé nascesse na semana 38. Gostava de marcar uma cesariana para o dia certo, aparecer à hora combinada, ter a possibilidade de organizar o dia da minha filha mais velha, de ter tudo pronto de forma a aproveitar muito e de forma especial e inesquecívelmente boa, este dia em que vai nascer a minha pequenina.

Será que vai poder ser assim?
Seja como fôr, que seja perfeito.

Um poema da minha filha!

Gravidez


Gravidez não é doença
pode ter apenas dor
Porque ao fim e ao cabo
leva alegria e muito amor


Gravidez não é doença
é cheia de alegria
Porque nela, se pensas
Até parece magia.


(9 anos)

quarta-feira

Yoganidra

Yoganidra é uma prática pela qual procuramos um estado de profundo relaxamento físico, quase uma dormência, um quase sono, no qual estamos plenamente conscientes.
Funciona quase como um sonho lúcido, ao qual se chega por um relaxamento do corpo enquanto se mantém a consciência atenta.
Tem sido a minha salvação.
Tenho o corpo dorido e estirado, está tudo apertado, distendido e contraído. Peso demais e tensão demais.

Quando me deito e faço a minha prática ainda recém-nascida de ioganidra começa tudo a derreter, a soltar, a ficar poisado. Aos poucos a dor vai.
Às vezes tenho demasiado sono, não aguento estar disperta e acabo por adormecer.
Sería melhor que tal não sucedesse, mas dormir também não é mau.

Sugiro vivamente esta prática.
É agradável, pés na terra, suave, e chega a ser viciante.

Nos primeiros tempos precisamos de ser guiados.
Depois adquirimos nossos próprios processos.


Penso que só a ioganidra me irá pôr a dormir hoje. E embora não seja esse o objectivo, acho que vou subverter e deliberadamente abafar este zum-zum-zum na minha cabeça com um belo camadão de relaxamento :-)

E cá vamos...


As análises feitas, aguardo os resultados. Uma bateria enorme de análises.. só faltou uma ao juízo, mas talvez tivessem deduzido que eu não tinha.


A minha filha tirou-me esta fotografia. Está-lhe no sangue. Esta miúda tirou-me esta fotografia com a maquineta de jogos, a nintendo! Que faria se lhe pusesse uma Canon ou uma Pentax nas mãos.
O tio e o avô dela também são assim, tiram fotografias como quem inventa uma realidade ainda melhor.


Daqui a uma semana lá irei, buscar os resultados. Espero que esteja tudo bem.
Dia 4 de Novembro terei uma consulta bastante importante onde todos estes elementos serão vistos pela médica.
Terei 35 semanas completas nessa altura, já não me lembro se terei entrado na 36.
ÓO contagem decrescente!!!


A pequena Vera está a dar-me aqui uma sessão grátis de boxe. Não sei se é boxe ou se é dança moderna, mas envolve muito movimento.

Espero que ela esteja bem.

Tenho a mala da maternidade quase pronta. E as coisinhas dela para os primeiros tempos também.

Estou a começar a sentir uma certa ansiedade. Aparentemente ando calma, mas depois não consigo dormir e dou-me conta de que ando todo o dia com os ombros contraídos e os dentes apertados.
Se calhar chegou a hora do valdispert diário.
Terei muito tempo para não dormir noites inteiras. Não preciso começar já, certo?


São 2h16 da manhã. Está tudo a roncar lá em cima... e eu a escrever desabafos no blog...!

segunda-feira

Estava aqui com sonhos

Quando não podemos embelezar a nossa casa de fora, podemos embelezar a nossa casa de dentro, e "dentro" é um lugar de muitas formas de ser lugar.

A vida é um periodo especial da inexistência, em que temos a oportunidade de experimentar entre o nada e o nada, algumas coisas nas quais existe de tudo.

Estar entre acontecimentos é em si um acontecimento e eu estou entre acontecimentos, numa espécie de fila para saltar da prancha, como quando andava na natação, e tinha um medo enorme da prancha, mas também queria ser capaz de saltar.
Cada passinho, cada um que saltava à minha frente, era como estas semanas que passam uma a uma, e que eu vou aceitando com o peito meio oprimido e a ansiedade de que queria ter já saltado, para sentir que já estava saltado, e não era preciso saltar.

Neste caminhar vertiginoso e lento ao mesmo tempo, tenho o corpo preso à bola de aço dos prisioneiros, mas não o que guardo dentro.
"Dentro" pode ser o corpo.
Mas também pode ser além do corpo, além ou aquém, uma parte de ser pessoa que é intestina como um intestino, mas menos visceral e mais etérea.
Não sei como chame a esse dentro, mas é o "dentro" que em mais gente vejo descuidado.
É um dentro onde habitam quase todas as torturas para o que atribuímos ao "fora". E é um dentro onde estão quase todas as soluções para o que esperamos que cheguem soluções de fora.

Criar, e ser criativo, na realidade só na fase final inclui algo fora. Começa tudo por ser um processo do dentro em revolução, na brincadeira de existir sem grandes equações químicas e nem matemáticas.
Eu, estou cansada do fora. Não tenho como dar resposta exterior a tudo isto de que me cerquei como uma cancela de amor com ferrolho de escolha.
Mas tenho recursos aqui dentro, que se abrem como mundos novos a cada dia. E posso investir nesses agora.
Preciso de ajuda nisso. Mas provavelmente tenho de pedir essa ajuda a outras partes de mim.

Decisões e confinamento

Tomar ao mesmo tempo decisões que se opoem é uma boa maneira de não conseguirmos cumprir as nossas decisões.
É uma arte, digamos assim.
Eu tenho sido um Dali, um Picasso dessa arte.
Tão sublime, tão sublime, que às tantas já nem eu percebo se estou na fase azul, ou se é da minha vista.

Ao mesmo tempo resolvi que era altura de vivermos juntos, de encontrarmos uma casa maior, de irmos para um lugar onde pudessemos construir uma vida nova, com mais comodidade, proximidade e com um sentido mais sentido daquilo a que eu fui convencionando chamar família.
Ao mesmo tempo eu sabia que a minha parte desse pacto era a minha ocupação quase em exclusivo á tarefa de manter este ninho limpo, bonito, "bom de chegar", com pessoas, com ar fresco e com cheiro a casa de uma família feliz.
Ao mesmo tempo eu sabia que eu não ia poder fazer nada disso. Tenho energia para pouco mais do que um banho e pôr a loiça na máquina. Tenho costas para pouco mais do que apanhar alguns sapatos do chão. Tenho paciência para pouco mais do que dois ou três latidos de cão. Tenho dinheiro para pouco mais do que dois iogurtes.
Ao mesmo tempo tenho a cabeça cheia de sonhos e de antevisões de mim, neste matriarcado que será a minha vida, aberto e abudante para quem queira fazer parte da história de amor que decidi que sería a minha vida.
Ao mesmo tempo estou sozinha, num mundo meu, onde não dei com portas por onde possam entrar os que tenham a chave certa para o tipo de ambiento solto, saudável e alegre no qual quero ver crescer as minhas filhas.

Aluguei uma casa de uma senhora muito nervosa que não queria alugar a casa, mas queria. Uma como eu que decide sim e não ao mesmo tempo.
Não posso espetar um prego, e durmo nos sofás que ela escolheu e que os meus animais não podem sujar.
Por isso tenho os animais todos tão confinados como eu, que também não posso colocar toalheiros na casa de banho, porque não vou furar azulejos onde nem sei onde passam os canos.

Está tudo velho e rachado aqui. E eu tenho sempre receio que as coisas despenquem na minha mão e eu não tenho dinheiro para compor as coisas.
Estou habituada a viver em casas minhas, onde o que se estragasse só me chateava a mim. E estou habituada a viver em casa mais novas, onde as paredes não abrem foles de humidade, e onde o tecto sobre as escadas não tem já marcado o desenho por onde a casa vai partir ao meio.

Hoje acordei com o pijama perfeito, dormi bem, calcei as pantufas perfeitas, soltei os cães no quintal, fui comer qualquer coisa.
Uma desordem terrível.
Tenho uma família funcional no amor, mas disfuncional no funcionamento. Ninguém foi às compras, ninguém tem dinheiro. A casa estava impecável sexta, domingo já estava uma badalhoquice e a cozinha está cheia de moscas.
Mas adoramo-nos todos, e por isso conseguimos sorrir e pensar que isto é uma fase.
"É sempre uma fase"
A vida em si é uma fase.
Este momento não tem como não passar, aliás uma cama de parto suga-me e eu sei que vou lá parar, e sei isso com tanta confusão de sentimentos que quase queria ir já para lá, e resolver isso já.

Estou a dois dias de entrar na semana 35.
A médica falou da semana 38 e uns dias para a bebé nascer.
Confinamento dentro do milagre.
Os milagres, têm paredes grossas e podem não ter portas nem janelas. E podemos acordar em pleno milagre, ter o coração contente com essa sorte, para logo a seguir vermos que não dá para respirar e fica-se um bocado na dúvida se milagre e identidade não será outro sim e não, que misturados numa vontade resultam num "talvez" a toda a volta.

sexta-feira

34 semanas


Estou... pesada.

Na semana passada, quinta feira, a bebé tinha 2, 326 quilos. Como é que eu sei isso? Mistérios das ecografias. Olham para um fémur e definem um peso...
Sinto-me como os pinguins, com um ovo que não pode caír na neve.
Hoje temos visitas.
Ontem apetecia-me chorar, estava tudo uma desordem e eu já preferia não ver ninguém até daqui a meio ano!
Sentia-me triste por fora e contente por dentro.
Deitei-me triste, mas fiquei com a mão a sentir os pontapés de uma bebé ausente de todos os meus problemas e presente em todo o meu milagre.
Acabei por sentir um sorriso em mim, não sei se cheguei a sorrir, mas posso ter sorrido, porque senti esse estado de espírito. Eram quase uma da manhã.
Foi uma dança gira de minúsculos pés e mãos que juntos cabiam na minha mão, a criar vultos móveis na minha barriga, a pontapear-me as costelas flutuantes e a obrigar-me a ir à casa de banho suponho que 4 vezes em 3 horas.

Preciso que isto acabe. Estou no limite das minhas forças e falta um mês. Ainda vou ganhar peso um mês. Essa ideia assusta-me.
Não é a gordura, ou a feiura. É o peso em si. O esforço dos meus tornozelos, o esforço que faço em levantar-me, o esforço que tudo, até as coisas mais simples acabam por envolver.

Quando a bebé se estica, estica a barriga, ficam os vasos sanguíneos apertados, falta-me o ar, o coração muda de ritmo e fico com a cara vermelha. Parece que me vai "dar uma coisa".
Algumas contrações aparecem para treinar, a bebé já virou há umas largas semanas e não voltou a pôr a cabeça para cima.
Agora já terá dificuldade em fazê-lo por falta de espaço.
Também ela vai ficando acanhada. Já não pode golfinhar como os golfinhos. Já está um bocado como às vezes sinto o cérebro no meu crânio: Apertado e confinado, a precisar de novos horizontes, mas sem saber saír de onde está, por ainda não ser o momento.


Agora, na verdade, é tudo sobre o momento certo.
Sobre a definição do momento certo.
O momento em que a vida vai decidir que esta vida quer iniciar um percurso de independência organísmica. Saír de um conforto uterino que se transforma num embaraço uterino, e poder passar a um colinho de braços e olhos, e tanta coisa que há por descobrir.
Mas só no momento certo.

segunda-feira

O véu

O fim da vida e esse mistério de não existirmos, depois existirmos e depois já não existirmos outra vez, anda a mexer-nos com o miolo desde o tempo das cavernas.
Desde muito antes do tempo de plantarmos couves, já nos fazia espécie isso de morrer, e dificilmente deixávamos corpos de algum dos nossos pelo chão se morressem.
Enterrávamos o corpo e mais alguns pertences, e até alguma comidinha para o caso de dar a fomeca do lado de lá.


Isso do "lado de lá", é outro dos mistérios, com 1001 metáforas culturais.
Uns dizem que se vai de barco para o outro lado do rio, outros vão numa estrada, outros num túnel, outros atravessam o véu...

É como se existisse sempre um filtro pelo qual se passa, no qual se existe depois em simultâneo, numa dimensão da qual estamos separados por rios, véus, estradas e outras formas de nos vedar acesso a essas formas espirituais de ser memória.


Em certas tradições místicas, esta é a altura do ano em que o véu mais se estreita, o rio tem o caudal mais fino e por cerca de um mês, poderá existir mais "visibilidade", "sensibilidade", "contacto" com o "outro lado".
Significa isto que é mais fácil lembrarmo-nos a propósito de coisa nenhuma de alguém que morreu, sonharmos com ela, encontrarmos algo que nos lembra essa ligação, recebemos recados por músicas, por conversas de terceiros, por todas as formas mais subtis ou menos subtis consoante a nossa abertura ou fechamento.


Para mim tem sido em sonhos. Sonhos, sonhos e mais sonhos. Todas as noites vem alguém, vem alguma forma, vem um formato qualquer de eu me lembrar que não sou independente de uma árvore gigante da qual eu sou o galhinho com dois frutos pequenos que gerei.


Honrar a nossa raíz, não é encobrir os erros, fazer de conta que essas pessoas foram todas santas e maravilhosas.
Honrar é lembrar, lembrar com aceitação, perdão e integração dessas pessoas que partiram, mas que nos deixaram sempre alguma coisa, que nos deixaram sempre imagens, histórias, genética, legado de tantas maneiras.

Para podermos existir, quantos tiveram de existir primeiro, desde o início dos tempos.
Estarão todos do lado de lá do véu?
Não sabemos.
São tudo mistérios que se podem explicar no humus da matéria orgânica transformada, na cadeia alimentar, ou que se podem explicar em hipóteses de purgatório, de reeincarnação, de coisa nenhuma...

Eu não sei nada sobre isto.
Sinto vida para lá da vida, e sinto a definição de vida demasiado confinada a um corpo para mim que sinto tanta vida sem corpo na minha experiência emocional, espiritual mais profunda.
E dirão, que a minha última sinapse apagará consigo o meu último devaneio místico e que afinal tudo se apaga e ficará apenas um resto podre de tudo o que fui.

Não na memória, não na memória dos que me honrarem, não na memória dos que eu tiver sabido conquistar num enredo de histórias de amor, de herança, de tanta coisa importante para alguém tão desimportante como eu.
Então eu presto isso à minha raíz.
Nestes tempos de véu mais fluído e fino, onde talvez algum dos meus passe, algum dos meus se lembre, no limbo do lado de lá, de uma mulher menina do lado de cá, que ainda não sabe nada disso, mas que mantém acesa a chama.


Mantenho acesa a chama de sermos todos um enorme braço de humanidade, que percorre a história por dimensões e dimensões de evolução como ela fôr, DNA e sequência ou rede cíclica de ida e retorno, ida e retorno.
Não preciso da teoria, basta-me sentir no peito a chama acesa, de tudo isso, de todo esse respeito, de toda essa força e essa diversidade, a ser lição de orgulho e de humildade ao mesmo tempo, no meu coração de pessoa em caminhada, sabe-se lá vinda de que paraísos, sabe-se lá a caminho de que paraísos também.

Ajudar em casa

Chamei-os à mesa da cozinha. Os dois cansados de um fim de semana de fazer imensas coisas.
Estávamos então os 4 ali presentes e eu podia sentir uma ligação entre todos nós que podia atravessar a mesa e o espaço que nos separava e manter-nos juntos no elo do cansaço, no elo de apesar de tudo estarmos ali uns para os outros.

Era preciso conversar e esta frase costuma assustar toda a gente. Quando queremos conversar não há problemas, mas quando "precisamos de conversar" já se sabe que o caldo entornou para algum lado e "cabeças rolarão".
Não aqui, onde em vez de "cabeças a rolar", gosto de ver cabeças em sintonia, corações em sintonia, e sem essa sintonia... não haveria nada para conversar.


O assunto era a ajuda.
Quando a minha barriga se foi tornando um claro extra, começou a tornar-se óbvio também, que eu precisaria de ajuda.
Precisamos de ajuda para aquilo que nos diz respeito, que habitualmente faríamos sozinhos, mas que por uma incapacidade qualquer, não está ao nosso alcance.

O que me pareceu importante deixar claro é que não preciso de ajuda para fazer aquilo que é para toda a gente, porque aí quem estava a ajudar era eu.
E quando eu não posso fazer coisas por todos e todos acabam a ter de as fazer, isso não significa que me estejam a ajudar, significa que estão a prescindir da minha ajuda e que estão a fazer as suas coisas.

Exemplos são as compras, o lavar da roupa, o estender da roupa, fazer a comida, lavar a loiça...
Todas estas coisas são para toda a gente.
Se eu as fizer eu também estou a ajudar? Ou estou simplesmente a fazer coisas normais.

É que depois, quando eu dizia:
- "Temos de fazer umas compras"
Todos faziam aquela expressão de exaspero, porque estão cansados, porque antes queriam fazer outra coisa, mas eu estou a pedir ajuda e é suposto ajudar...
Mas.. quando eu digo que temos de fazer compras, eu estou a disponibilizar-me para algo que todos temos de fazer, não é propriamente um favor.

Tudo isto parece óbvio.
Mas não foi nada óbvio.

E foi preciso conversar, porque como eu sou pouco de pedir ajudas e como eu própria tenho imenso esforço em fazer a minha parte, e como ninguém estava com muita vontade de fazer coisa nenhuma, isto estava a ficar uma casa daquelas das quais dá vontade de fugir e voltar uns meses depois com uma equipa de limpadores milagrosos.

Só que eu estou com uma enorme barriga, que endurece pelo esforço, o umbigo com uma hérnia que sai e doi com o esforço, estou com 70 quilos, estou cansada, tenho a bexiga apertada e tudo me custa imenso.
Eu preciso realmente de ajuda. Mas são as ajudas que me dizem respeito, que me custa imenso pedir, como:
- Apertar os atacadores dos sapatos
- Apanhar tudo o que está sempre a caír-me das mãos (o que é irritante)
- Subir as escadas para ir buscar coisas de que me esqueci...

Estas são as coisas para as quais preciso de ajuda.

Para ter a casa em ordem, o jantar na mesa, a roupa lavada e estendida, as compras feitas... para isso não preciso de ajuda. Mas se quiserem a minha ajuda eu posso ir..
Afinal, também quero contribuir com a minha parte.

sexta-feira

O que é negligência?

Muitos associam negligência a deixar uma criança andar rota, e suja. Normalmente num quadro de pobreza, de precariedade e de marginalidade.
Negligência, para muitas pessoas, é não satisfazer as necessidades básicas das crianças, como alimentar, manter saudável, levar á escola, ao médico...
Outros ainda podem confundir negligência com violência, na medida em que por vezes co-habitam e na realidade negligência é uma forma de violência pela ausência, pela falta.


A negligência, porém, é transversal a todas as idades, classes sociais, referencias culturais, quadros económicos.
A negligência pode ser feita entre adultos e crianças, adultos e adultos, no casamento, na amizade, no trabalho, na velhice.
A negligência sucede na relação indivíduo/indivíduo, mas também nas comunidade em relação aos indivíduos, nas comunidades umas com as outras e à escala global.


Negligência é um não cuidado, uma não atenção, uma não presença, um não gesto, uma não validação, uma não valorização.
Negligência é olhar para o outro e não o ver, não o perceber, não ficar encantado.

É fácil negligenciar uma criança porque se for bebé não fala, e pouco tempo depois passou a ver o mundo com olhos negligentes como os nossos e passa a achar normal a negligência.
É fácil negligenciar quem está mais vulnerável.
E é a negligência com piores consequências para o negligenciado.


Nas crianças a negligência é mais do que um problema de atitude, porque na criança corpo, sentimento e ideia não têm uma linha a separar e crescer faz-se dessa trança que se transforma em ser, pelo menos no que o ser sente que é.

O negligente foi negligenciado. É a pandemia em mais larga escala no planeta. Espero que apenas exista neste planeta. Espero que o cosmos não conheça outra negligência.

Vou escrever mais sobre negligência. Mas agora quero descansar num outro conceito.
Uma ideia/sentimento que prefiro ver prevalecer e que precisa de ser muito repetida:


Eu, com toda a minha verdade, estou aqui, para aquilo que tu és e nisso, somos perfeitos.

Uma pena

Os meus pais tentaram fazer um bom trabalho. É ironico chamar "um bom trabalho" ao que criar-nos foi, porque para os meus pais os valores humanos assentavam em grande medida nos valores do trabalho.

Os meus pais tentaram fazer um bom trabalho dentro do que sabiam e do que conseguiram. E eu sei que é difícil porque tenho uma filha com 9 anos e sei que é difícil e humildemente eu não faço ideia do que irá resultar da minha interacção com ela.

A educação, ou a criação, é algo cuja factura só recebemos muitos anos depois, quando já nos escapou das mãos fazer a diferença e passamos à fase das compensações, dos remendos.
Dos 0 aos 6 já estava tudo escrito. E depois continuamos a ter um papel importante, mas tudo o que fizermos irá colar no que tiver sucedido até aos 6.


No caso dos meus pais, existiu um paradoxo que ainda hoje me zanga. O que me zanga é que tudo parecia perfeito dentro do quadro de valores que nos incutiram.
E no entanto lembro-me de chegar aos vinte e poucos anos a sentir-me uma nulidade e considero que tudo em mim era da mesma extrema imaturidade emocional que ainda hoje lhes atribuo.

Quando temos uma criança nas mãos, ela é apenas uma criança e nós temos toda uma história, um conjunto de certezas e um filtro de percepção do mundo, do que importa e do que as pessoas devem ou não ser. A criança é apenas uma criança.

Podem pôr-nos no judo e na natação, no inglês e nas explicações. Podem vestir-nos, pentear-nos. Podem dizer coisas queridas, ou não dizer nada, ou nem bater nem gritar nem traumatizar de forma expressa.
Dizemos "que bons pais".

Mas e que opinião tinham realmente estas pessoas dos bebés que fomos, dos meninos e meninas de 1, 2, 3, 4 anos que tínhamos. O que acharíam realmente de nós?
Será que nos achavam brilhantes? Ou cansativos?
Um orgulho? Ou um embaraço?
Uma maravilha? ou de uma mediania que nada se prestava a dizer?

Os meus pais tentaram fazer um bom trabalho. Por isso fizeram o melhor possível e mais do que isso não se lhes podia exigir.

No entanto a minha ideia é a de que a opinião que tinham sobre mim não me edificou, não me estruturou numa certeza de que eu era especial, capaz, forte e promissora.
Eu acho que eles achavam que eu era frágil, mediocre, mariquinhas e que dificilmente acabaria o liceu.

Desde então mais não fiz do que tentar provar-lhes o contrário.
E se eles valorizavam o desempenho!!
Depois comecei a ter de provar a mim mesma o contrário.
Depois comecei a ter de provar a toda a gente o contrário.

Isto significa que, se eu tinha de me esforçar tanto para provar algo em que nem eu acreditava, então eu era uma fraude.
E se eu era uma fraude, como podia provar-me que era capaz de seja o que for?


Não é preciso ter 35 anos para sentir isso. Basta ter 5. Não precisamos que nos digam nada. Até podem dizer-nos "que lindo desenho!"
Nós sabemos quando existe fraude.
A fraude desmascara-se a si mesma, e é por isso que lhe chamamos fraude, senão chamavamos-lhe verdade e estávamos enganados.


Os meus pais viram em mim um bebé sem promessas, fui amamentada o menos possível, fui colocada em amas e infantários o mais possível, fui a filha frágil que precisavam de sentir que precisava de ser protegida como a minha irmã não tinha sido, por uma fatalidade parva que ninguém podia controlar.
Mas a mim podiam.
Nem bicicleta, nem brincar na rua, nem andar numa escola pública, nem deixar-me errar, nem aceitar os meus queixumes!
Eu fui a menina metida na encubadora á nascença e ainda lá fiquei looongos anos. Numa incubadora vivencial. Porquê?
Por nada.
Porque sim.
Fazia sentido.

E foi nesse sentido que os meus pais tentaram fazer um bom trabalho.


Infelizmente, creio que não fizeram.
Creio que me encheram dos mesmos equívocos e esqueceram-se de que eu precisava de tempo, de me sentir com crédito e com direito a sentir reconhecimento. Creio que não perceberam nem os meus talentos, nem a minha força, nem as minhas potencialidades.
Chamaram fragilidade á minha sensibilidade.
Chamaram fragilidade à minha empatia.
Protegeram-me da vida e depois acharam-me impreparada para a vida.
Acharam que eu não iria acabar o liceu, mas jamais mo permitiriam. Não existiam alternativas.
Acharam que eu era volúvel, dispersa, preguiçosa, fraca, mariquinhas.
Acharam isto desde o princípio.

Como poderíam educar-me para acreditar em mim, como podiam fazer-me sentir que podia arriscar, podia tentar, podia errar. Como podiam fazer-me sentir perfeita e merecedora de amor incondicional? Como podiam dar-me a maturidade emocional que não tinham? A profundidade espiritual que não tinham? Como podiam fazer-me sentir capaz, responsável e promissora, se não acreditavam que eu fosse.

E ainda hoje.. Ainda agora, a dúvida subsiste.
Quem sou eu?
Esta pessoa que não valoriza o desempenho, nem o trabalho.
Esta pessoa que só valoriza a humanidade do ser humano, a vida da vida, o crescimento e aprofundamento da experiência de viver, em amor, em família, numa estrutura nutritiva.
Esta pessoa que não acredita em segurança a longo prazo. Porque acredita que a história nos mostra que esse é um conceito abstrato. E que é dentro que alguma segurança pode haver. Se houver.
Esta pessoa que acredita que o único investimento válido se faz em construir pontes por dentro, castelos de paz e de entrega ao processo da vida.
Porque o resto... assim vai assim vem.

E do que observo o meu pai partiu deixando as contas um caos. A empresa em que trabalhou morreu. As coisas seguiram o seu curso. A minha mãe continua a investir na mesma estrutura, que um dia vai ter o mesmo fim. O mesmo colapso que tudo o que é superficial leva.

Ela acha que não sou de confiança. Acha que não sou uma pessoa forte, nem viável e que estou condenada a uma "vida pequenina" como ela diz. E então, tenta defender-me de mim mesma, como desde o primeiro dia. Ainda não percebeu.
Ainda não percebeu que desde que nasci ainda não fez outra coisa senão cortar-me as pernas, mandar-me andar e depois oferecer-me benevolente umas moletas.
E ainda hoje pode dizer-me:
"És mesmo inteligente!"
Mas depois decide tudo como se eu fosse mentecapta.

E vai acabar por partir tambem, deixando tudo num caos, porque não tem qualquer competência de gestão, e vai estampar tudo, e vai achar que foi por nossa causa, e nem vai perceber, que todo o tempo andou a lavrar asfalto, a garantir uma segurança impossível e a ver filhos incapazes, onde estavam dois seres humanos de valor.

... uma pena.

quinta-feira

Isso foi apenas um sonho mau!

Um sonho mau é um momento em que voamos para uma história dolorosa, que sentimos como realidade, para depois acabarmos por descobrir que não estava a acontecer. Foi apenas um sonho mau.
Acordamos e estamos noutro lugar, com outras pessoas, ou com ninguém, mas o contexto é outro e em poucos minutos, com a luz acesa e algum movimento, podemos tirar de cima o peso da energia maligna do sonho mau, para voltarmos a mergulhar em novos sonhos, oxalá desta vez mais benignos.


Esta noite tive um sonho mau.
Acordei e o sonho não se dissipou.
Desci as escadas, comecei o dia e o sonho não se dissipou.
E mesmo agora.. ainda não consegui dissipá-lo.

Encontrei nalguns tijolinhos dos pés daquilo que me sinto ser, partes do meu sonho mau, em cima do que, todos os outros tijolinhos tinham sido colocados. Uma tibieza estrutural que se propagou pelas leis da física ao edifício e que deixou cada um dos meus passos no momento inclinado da Torre de Pizza.
Que aliás é um momento que parece ter sido assim desde sempre.
Tal como o meu.


No meu sonho mau apareceu a mesma cena de muitos sonhos maus, mas com outra cara.
De tantas vezes o sonho mau ter uma cara, eu achei que o problema era aquela cara.
Mas quando o sonho mau apareceu com outra cara, eu percebi que era mais fundo. O sonho mau não era um, não era uma pessoa, não era uma relação.
O sonho mau era um estado de coisas, uma herança de sempre, trazida sabe-se lá desde onde, e por quem, que provavelmente por muitos, pela dança de todos ao redor do nascimento de mais um na árvore da minha família.

As famílias trazem da raíz certas histórias.
Histórias com a mesma história em várias caras e a cada nova geração, sempre alguém segura a tocha e continua a corrida de estafetas.
Os alcóolicos das famílias, os poetas das famílias, os malucos das famílias, os trabalhadores das famílias, os queridos das famílias. Todas as gerações parecem trazer representantes de cada prumada dessa raíz cheia de histórias.

E eu acordei e pensei:
- ufa! Foi apenas um sonho mau!

mas não tinha sido.
Desci a escada, entrei na cozinha e fui fazer o café enquanto percebi que o sonho mau é mais antigo do que eu, e agora não sei como vou arrancá-lo da história dos meus ramos para que os meu frutos não tenham de sair sempre contaminados do veneno estúpido de uma raíz auto-fágica que nem sequer é minha.

sábado

Acordar devagarinho

Esta noite dormi bem, e acordei calmamente com a Mimi a ser gato chato em cima de mim com aqueles ron-rons dela para me roubar mimos à força.
Acordei e ainda estava naquele "meio cá-meio lá" que ainda permite voltar ao sono profundo, mas que também já tem portas abertas para o começar do dia, levantar, calçar as chinelas...


Nesse momento, nesse bocadinho de momento, eu acordei e fiquei espantada. Nada!
A barriga lisa, sem dor, sem comichão, sem esticão, sem peso, sem dureza, sem movimentos, o peito sereno, as costas bem, o cóccis sem parecer pronto a estalar numa fractura definitiva e paralizante...
Foram nem chegou a minutos, acho.
Foi um momento assim.
A Mimi ali a ronronar pelo mimo mínimo obrigatório...


Depois, lá foi. Uma câimbra, um pontapé, as costas não rodavam, não podia mudar de posição a não ser agarrando a cabeça da cama para suportar o meu peso...
Ah! É mesmo verdade. Estou grávida de 31 semanas. E sim, a comichão no peito, a dor no umbigo...
O cenário do que tem sido.

Terça tenho consulta com a obstetra. Não sinto culpa da minha falta de coragem de aguentar tudo isto muito mais tempo. Nada na gravidez está "pensado" para ser por muito tempo. Cada dia parece um mês, e nove meses são demasiados dias, mesmo assim.
A vida é frágil, como a gravidez, como tudo o que é corpo em nós.
E eu não vou fazer de conta que tudo isto é eterno, e o meu corpo é eterno e eu vou aguentar eternamente esta situação.

A contagem decrescente está a contar sim. E vai contar a cada dia, menos um dia.

No meu não querer sofrer existe imenso amor. A vontade quase infantil de conhecer esta menina que rebola aqui dentro como uma golfinha apertadinha num oceano que se vai tornando pequeno demais.
A minha bexiga reclama por espaço.
E a minha vida também.
E é normal que assim seja.


Felizmente, as minhas filhas, têm uma mãe que também é pessoa.

Saber o que se passa enquanto passa.

Foi estranho ter-me dado conta de que uma coisa me afectava tanto, sem que eu tivesse dado conta do quanto me afectava.

Uma das razões pelas quais as mães são as mais típicas co-dependentes, começa logo aqui, nesta confusão entre maternidade e sofrimento e de uma espécie de aceitação incondicional de que ser mãe doi.
Como ser mãe doi, e doi a todas as que o são, então é tudo normal e é aguentar.

Eu, que comunico de uma forma ou de outra com tantas pré-mamãs e com as mães de todas as crianças que foram sendo coleguinhas da minha filha ao longo da sua escolaridade, e com as mães que agora são avós, mães daqueles que eram só filhos quando eu também ainda era só filha, e ainda não mãe... habituei-me a considerar completamente normal e aceitável passar por todos os sofrimentos que me coubessem com a placidez das vacas no campo, porque isso simplesmente é normal.


Existe uma mística em torno da gravidez, do parto e dos primeiros meses do bebé, que nos envolve, e que tem uma base cultural e ancestral profunda que nos diz que quem se tenta poupar aos sofrimentos de mãe, é má mãe.
E esta ideia está de tal forma enraizada que as próprias mães se gabam do que sofrem, cada uma com uma história mais sinistra, como se tudo isso fosse aceitável e normal.

É razão de orgulho, porque passar sem sequer hesitar, por tudo isso, pelos filhos, é sinal de que se é uma boa Mãe. Mãe essa instituição simbólica de abnegação e altruísmo, de cuidado, pureza e amor que ainda paira nas nossas entranhas simbólicas sem que sequer nos demos conta disso.

Continuamos a chorar aos pés da cruz. Continua a ser suposto não poder fazer nada, não haver nada a fazer, e nem sequer ser o nosso papel na história encontrar soluções.


Eu amo ser mãe. Aliás... eu nem sei não ser mãe. É uma coisa que chega a confundir-se com o que sinto que sou na minha definição mais profunda de mim mesma.

E pergunto:
Será que não há outra forma?

Será que não podemos agarrar a parte maravilhosa de ser mãe e largar esse lastro de sofrimento suposto?
O meu caminho de pessoa tem sido viver nessa linha que separa a necessidade de sofrer pelos outros, da necessidade de acordar para certos absurdos e largar essa necessidade da mão.
Porque largar essa necessidade da mão, é eventualmente o melhor que posso fazer pelas minhas filhas. Dar-lhes espaço para que um dia não tenham de viver com esse estigma de filho que é a noção de que todos fizemos as nossas mães sofrer de uma forma ou de outra.
E é a forma de criar para as gerações vindouras da minha linha de filhas e netas, uma forma de estar no corpo de mulher, na maternidade e por isso na humanidade de ser gente; que não precisa de sofrer para provar que ama. Basta ir sempre encontrando formas de aceitar o que não se pode mudar, mas mudar com garra e alegria tudo o que faça a lágrima transformar-se num sorriso pacífico.

É que eu não tenho nada contra a placidez das vacas no campo, mas acho patológico ruminar em silêncio dores sofridas no limite do corpo, com o ar de êxtase místico de quem nem percebe que existem outras formas melhores de ser e de viver as coisas.